Domingo, 28 Abril 2024 | Login
Agosto Lilás: 61,1% das vítimas de feminicídio e 45% das mulheres que declaram já ter sofrido violência são negras

Agosto Lilás: 61,1% das vítimas de feminicídio e 45% das mulheres que declaram já ter sofrido violência são negras

O Agosto Lilás marca a celebração de uma importante conquista no campo do direito da mulher: a implementação da Lei 11.340/2006, a Lei Maria da Penha. Há 17 anos, a legislação brasileira estabelece parâmetros de proteção e defesa das mulheres que vivem em situação de violência doméstica. Seja do parceiro, filho ou parente com quem reside, a lei ampara mulheres submetidas a violência física, verbal, psicológica, sexual ou patrimonial.

Embora a lei tenha se consolidado e até se tornado referência internacional, os registros de violência de gênero e doméstica aumentaram no último ano e reforçam a necessidade do debate em torno da temática. De acordo com dados do Anuário de Segurança Pública de 2023, durante todo o ano de 2022 foram registradas 245.713 ocorrências relativas à violência doméstica em todo o Brasil. Na Bahia, os registros somaram 9.562 casos. Em relação ao feminicídio, o país e o estado acumularam 1.437 e 107 casos, respectivamente. Em comparação ao ano anterior, observa-se um aumento de 3,4% da violência doméstica nacionalmente, e 15% do feminicídio a nível estadual.

Segundo a delegada representante da Delegacia Especial de Atendimento a Mulher (Deam) de Camaçari, Maria Tereza Silva, o aumento não se trata de um crescimento da violência propriamente dito, mas de um maior debate do assunto. “A violência contra a mulher não aumentou, ela continua. O fato é que hoje as mulheres criam coragem para falar sobre isso, hoje elas gritam”, constata.

Agosto Lilás: 61,1% das vítimas de feminicídio e 45% das mulheres que declaram já ter sofrido violência são negras
Maria Tereza Silva, titular da Deam Camaçari. Foto: Patrick Abreu/Destaque1

“Elas criaram coragem, porque elas sabem que hoje existe uma delegacia onde ela vai ser acolhida, respeitada, e que dali ela vai sair com uma proteção”, afirma.

Em entrevista ao Destaque1, Tereza relembrou o caso de Iná Souza, uma idosa de 68 anos, moradora da Gleba C, em Camaçari, que foi vítima do ex-companheiro (saiba mais). Agredida a pauladas, a vítima teve o corpo lesionado e crânio e dentes quebrados. Tudo aconteceu dentro da própria casa, em março de 2023, mas, de acordo com a delegada, a mulher já sofria agressões há mais de 30 anos.

Vulnerabilidade: a superexposição da mulher negra às violências

Dentro dessa realidade, existe um grupo de mulheres em maior vulnerabilidade às violências de gênero. Segundo dados de março de 2023, da pesquisa “Visível e invisível: a vitimização de mulheres no Brasil”, do Instituto Datafolha com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, cerca de 45% das mulheres que declaram já ter sofrido violência ou agressão ao longo da vida são negras (pretas e pardas). O percentual das mulheres brancas é de 36,9%.

Conforme o Anuário de Segurança Pública de 2023, enquanto 61,1% das vítimas de feminicídio são negras, 38,4% são mulheres brancas. No âmbito estadual e municipal, a Polícia Civil informou que não faz separação dos dados acerca do perfil das vítimas, como raça e idade.

Segundo a presidente da Comissão de Proteção aos Direitos da Mulher e da Mulher Advogada da Ordem do Advogados do Brasil (OAB) em Camaçari, Rosangela Souza, o diálogo para incrementar a legislação em defesa das vítimas é constante, sobretudo no que diz respeito a uma atenção ao grupo em maior exposição.

“É importante salientar que, por se tratar de mulher negra, ela está constantemente sendo exposta, e de certa forma ocorre a revitimização desta mulher, fator que estudiosas chamam de sobreposição de violências, em razão da objetificação do corpo da mulher negra”, frisa Rosangela.

“A Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher e da Mulher Advogada tem se mantido atenta, dialogando e aprimorando mecanismos das políticas públicas para mulheres com demais agentes públicos no nosso município, para que a lei seja cumprida em sua plenitude, principalmente na garantia de fazer valer os direitos destas mulheres que têm os marcadores étnicos e poder aquisitivo como signos agravantes de suas vulnerabilidades”, declara.

No combate à violência contra as mulheres negras, a Secretaria da Mulher (Semu) de Camaçari aposta em campanhas pontuais de conscientização. “Por exemplo, agora teve o Julho das Pretas, a gente deu toda atenção, teve desfile e tudo mais”, destaca a secretária Fafá de Senhorinho.

O fator preponderante: a denúncia

Para a secretária da mulher, a denúncia é o fator principal no combate às violências contra as mulheres. “Às vezes a pessoa não acredita que está acontecendo, não participa das coisas, então não vê. Faz vista grossa das coisas, na verdade, e não procura um apoio psicológico, o apoio da secretaria, não vai em nenhum setor. Ela está vendo que está existindo essa violência, passa por aquilo, mas não procura [ajuda]. Às vezes tem como ela procurar uma pessoa para poder dizer que está acontecendo isso, mas, às vezes, se omite. Muitas vezes a violência vem crescendo, mas há muito tempo que sempre existiu”, alerta.

A existência de leis de amparo vinculadas a campanhas de incentivo à denúncia é elemento fundamental no combate à violência doméstica. Historicamente, a violência doméstica sempre se fez presente em grande parte dos lares brasileiros. Hoje, as vítimas possuem respaldo jurídico para levantar suas vozes contra a dura realidade na qual estão imersas.

Na avaliação da advogada Rosangela Souza, a legislação ganhou atualizações e melhorias ao longo dos anos. “Tivemos muitos avanços desde a promulgação da Lei 11.340/26. Antes, a própria vítima entregava a intimação ao agressor, por exemplo, como acontecia nas cidades do interior da Bahia. Antes da promulgação, as agressões domésticas eram vistas como crimes de menor potencial ofensivo e eram julgadas nos juizados especiais [no popular: pequenas causas], o que era um disparate sem precedentes”, relata.

Na prática, para a delegada Maria Tereza, dois dos principais avanços da lei foram a medida protetiva e a concessão de autonomia para os delegados e juízes poderem agir de imediato nos casos mais urgentes, dando uma resolução rápida às situações mais críticas.

A violência em números

De acordo com dados da Polícia Civil da Bahia, nos primeiros sete meses deste ano, o estado contabilizou cerca de 3.064 aberturas de inquéritos com peça de pedido de medida protetiva de urgência sob a Lei Maria da Penha. Nesse mesmo período, foram registradas 15.565 ameaças a mulheres e 54 casos de feminicídio.

Diante desse contexto cercado de violências, a realidade em Camaçari não é muito diferente. A cidade possui, de janeiro a julho deste ano, 765 registros de ocorrências gerais na Deam, dos quais 384 possuem um inquérito policial em aberto. Isso significa dizer que, de todos os boletins de ocorrência registrados na delegacia, cerca de 50,2% já possuem uma medida protetiva expedida contra os agressores. Destes, em cerca de 33 casos foi necessário efetuar a prisão em flagrante em decorrência do descumprimento da proteção emitida.

Para a execução dessas prisões, a lei ganhou, em 2015, o apoio da Ronda Maria da Penha. A medida é uma parceria entre a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), a Secretaria da Segurança Pública (SSP), o Ministério Público da Bahia (MP-BA), o Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA) e a Defensoria Pública do Estado (DP-BA), em prol do combate à violência doméstica.

Caminhos para o futuro

Para Rosangela, presidente da Comissão dos Direitos das Mulheres da OAB Camaçari, o caminho também deve ser iniciado na educação, sobretudo, na aposta da conscientização das vítimas sobre as condições às quais estavam submetidas.

“Mais políticas educativas com o objetivo de conscientizar as vítimas sobre como a violência em razão do gênero ocorre, como identificar e como se proteger. Para possíveis agressores, a mudança de padrões machistas arraigados. Portanto, a informação sobre políticas que erradiquem condutas violentas são a chance que temos”, propõe a advogada.

Além do papel educacional, a advogada diz ser importante que haja revisões no aparato jurídico para assegurar que todos os níveis de violência possam ser devidamente combatidos. “Sempre precisamos revisar nosso ordenamento jurídico, porque o direito não é algo estático e está em constante mudança para acompanhar os anseios da sociedade. Precisamos, sim, atualizar a política de enfrentamento à violência doméstica. Os pontos mais sensíveis, no tocante à violência psicológica e patrimonial, precisam ser aprimorados. As delegacias e toda a rede de enfrentamento precisam refinar a abordagem e acolhimento à vítima destas modalidades de violência, que muitas vezes se apresentam como microviolências capazes de causar danos irreparáveis à vítima”, sugere Souza.

Em Camaçari, a Secretaria da Mulher possui, atualmente, cerca de 11 projetos de combate à violência contra a mulher: “Teatro na rua”, “Semu Itinerante”, “Mães especiais”, “Mulheres Especiais”, “Homens Reflexivos”, “Semu nas Escolas”, entre outros.

“A gente ainda tem, além desses equipamentos, o quadro completo: psicólogo, assistente social e jurídico. Ainda tem também a rede [de combate]: a Deam, o Ministério Público, a Defensoria Pública, que dão esse apoio à rede”, lembra Fafá.

Soma-se a essas ações o Centro de Referência de Atendimento à Mulher (Cram) Yolanda Pires, na sede, e o Núcleo de Atendimento à Mulher (Nam), na orla do município. Desde 2017, a instituição fornece auxílio psicológico, jurídico e social para mulheres em situação de violência. Durante todo o primeiro semestre de 2023, as instituições realizaram cerca de 1.500 atendimentos para as moradoras da sede, orla e zona rural de Camaçari.

Deixe um comentário

Certifique-se de preencher os campos indicados com (*). Não é permitido código HTML.