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Entenda a história do processo movido pelo artista plástico Juarez Paraíso

Entenda a história do processo movido pelo artista plástico Juarez Paraíso

Para escrever a letra de Samba de Orly, lançada pela primeira vez no disco Construção, de 1971, Chico Buarque contou com pitacos de Toquinho e Vinícius de Moraes. Durante um dos shows realizados no Teatro Castro Alves, Toquinho revelou que teria escrito uns versos, e, dias depois, Chico teria aparecido com o resto da canção pronta. Vinicius, de lado, teria pego o papel, lido e comentado: “A letra é boa, mas tem umas frases que podiam ser melhoradas”. Ele teria sugerido que o verso ‘Peço perdão pela duração dessa temporada’ fosse substituída por ‘Peço perdão pela omissão um tanto forçada’. Mas a música, como boa parte na época, não passou ilesa pelo pente fino da censura, que vetou a sugestão de Vinícius. Quando Toquinho ligou para avisar, ele teria dito: “A frase sai, mas eu continuo na parceria”.

A história poderia servir como pano de fundo para uma conversa de mesa de bar, mas também foi argumento da defesa do artista plástico Tatti Moreno, 76 anos, sobre os direitos autorais da escultura Iemanjá, na sessão da 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça da Bahia no último dia 30. Condenado a pagar R$ 100 mil por danos morais e patrimoniais por unanimidade, dentre outras punições, Tatti estava como réu, desde 2016, em processo movido pelo artista Juarez Paraíso, 87 anos, de acordo com a visão da Justiça, o verdadeiro autor da obra.

“A própria sentença reconheceu a participação do réu na concepção e elaboração da sereia, mas não entendeu essa colaboração artística como suficiente para ensejar a coautoria, levantando o tema: o que é a coautoria e a participação relevante?”, afirmou, durante julgamento público, o advogado de defesa, Eugênio Kruschewsky.

Eugênio alega que a contribuição teria sido muito mais do que meramente intelectual. Tatti teria sido o responsável pela sugestão de que a sereia fosse esculpida grávida e teria participado da modelagem do corpo da escultura. Paraíso, entretanto, afirma que não houve contribuição intelectual, e que Tatti foi responsável apenas pelo intermédio entre o autor e o local de exposição: o Condomínio Interlagos, em Camaçari, onde teria uma propriedade.

Obra pública

Diferente do trio Toquinho, Vinícius e Chico, eles não eram amigos e nem trabalharam juntos. O que teria acontecido, segundo Paraíso, foi a realização do projeto por ele e a modelagem por alunos sob seu comando, na época em que era professor da Escola de Belas Artes, na UFBA, durante a década de 1980.

“Como toda obra pública de caráter monumental precisa de várias mãos, realizamos a modelagem do barro em espaço público, para que todos os interessados pudessem participar. Fiz isso com objetivos didáticos, isso movimentou a vida docente e desenvolvia a vida profissional dos estudantes. Arte monumental é arte pública”, diz Paraíso.

Paraíso ouviu a história pela primeira vez quando foi ao Condomínio para fotografar a obra. A ideia era incluí-la em seu livro Desenhos e Gravuras, publicado em 2001. Mas foi barrado por um segurança, que afirmou que fotografias só poderiam ser tiradas com a permissão do autor. “O autor sou eu'', disse. E ouviu “Não. É Tatti”.

Buscou um advogado, mas só deu início ao processo após o colega publicar o livro A Arte de Tatti Moreno”. Nele, o escritor, conhecido pela autoria dos orixás do Dique do Tororó, diz também ser autor da sereia Iemanjá. A reportagem entrou em contato com Tatti Moreno, que afirmou não estar disposto a falar no momento por estar ocupado em um projeto.

Das páginas 158 e 159 do livro, que tratam da obra como se fosse de Tatti, o TJ-BA também exigiu que fossem suprimidas essas informações. Além disso, ele foi condenado a publicar três vezes em jornal de grande circulação, um texto dizendo que a obra é de Juarez, além de colocar uma placa indicativa do autor na obra. Até então, Tatti Moreno nunca havia reclamado a autoria publicamente. Ele ainda pode recorrer ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). Mas, de acordo com o advogado de Paraíso, Rodrigo Moraes, a chance de reversão é ínfima.

O especialista em propriedade intelectual explica que, para o direito autoral, a coautoria cabe para quem traz uma contribuição efetiva intelectual, e não uma sugestão. “Ter assinado sem ter criado nada é uma violação do direito moral, porque o direito moral do autor é um direito inalienável e irrenunciável. A autoria de uma obra não pode ser vendida, cedida. É diferente do direito patrimonial de autor”, diz.

Além deste caso, Juarez Paraíso viu várias de suas obras, instaladas em locais públicos, serem destruídas ao longo dos anos, em situações de intolerância religiosa. Das perdas, para ele, a pior aconteceu em 2000, quando a Igreja Evangélica Renascer em Cristo adquiriu os cines Art I e II, no Politeama, e demoliu a marretadas os painéis do espaços. Já Nascimento de Oxumaré foi pichada com a inscrição “Deus é fiel”. Um mural de 40 metros quadrados para o antigo Cine Bahia, na Rua Carlos Gomes, também foi desfeito pela Igreja Evangélica Universal.

Ao processar os agressores, ele ganhou a causa: o processo durou quatro anos e a igreja foi condenada a pagar uma indenização de 170 salários mínimos. “A cegueira e a intolerância são terríveis. É uma pena que as pessoas não tenham consciência de que o objeto cultural pode ser um bem cultural público”, diz.

Direito autoral

A discussão sobre direito autoral e propriedade intelectual ainda perpassa pela história de muitas obras brasileiras e confunde muita gente. O que pode e o que não pode ser feito em casos de disputa por direitos autorais? Obras em domínio público, como os livros de Shakespeare ou até a popular Escrava Isaura, por exemplo, não passam por exigências do tipo. “Nesses casos, existe maior liberdade para a adaptação e uma autorização não precisa ser requerida ao autor”, diz Antônio Carlos Morato, professor de Direito Autoral da Faculdade de Direito da USP.

No caso de Tatti e Paraíso, Morato explica que, mesmo que houvesse um elemento de originalidade de Tatti na obra, como uma contribuição intelectual, ainda assim, o correto seria constar o nome de Paraíso onde quer que fosse exibida. “Mesmo que o objetivo dele fosse criar outra obra com inspirações na de Juarez, uma citação ainda precisaria ser feita".

Sob a análise de Morato, a parte mais interessante da sentença foram as que envolveram o reconhecimento público por parte de Tatti de que a obra é de Juarez Paraíso. “Só a indenização não resolve. A partir do momento em que o reconhecimento público é feito, o conhecimento atinge o maior número de pessoas possíveis, pelo que decidiu o Poder Judiciário e os peritos ou assistentes técnicos”.

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